sexta-feira, 15 de novembro de 2013

O Manifesto da Geografia - Milton Santos




O Manifesto
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O PAPEL ATIVO DA GEOGRAFIA
UM MANIFESTO
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Milton Santos*

The active role of Geography: A Manifesto
Abstract
The active role of Geography in Academia, in Planning and as a tool for building up citizenship are discussed in this Manifesto. Considering space as the central scientific category of the discipline, the author proposes that one should view it as 'used territory ', a conception which encompasses both the active role of space as actor and its role as the object of action. It is only through the adoption ' such a perspective that geographers will effectively address the significant questions which face society today.

Resumo
O papel ativo da Geografia na Academia, em Planejamento e como um instrumento de construção de cidadania são discutidos neste Manifesto. Considerando o espaço como a categoria científico central da disciplina, o autor propõe que se deve vê-lo como "território usado", um conceito que engloba tanto o papel ativo do espaço como ator e seu papel como o objeto da ação. É somente através da adoção "como uma perspectiva que geógrafos efetivamente abordar as questões importantes que enfrentam a sociedade de hoje.




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O papel atribuído à geografia e a possibilidade de uma intervenção válida dos geógrafos no processo de transformação da sociedade são interdependentes e decorrem da maneira como conceituamos a disciplina e seu objeto.

Se tal conceituação não é abrangente de todas as formas de relação da sociedade com seu meio, as intervenções serão apenas parciais ou funcionais, e sua eficácia será limitada no tempo.

É verdade que, na linguagem comum e no entendimento de outros especialistas, assim como de políticos e administradores, a geografia é frequentemente considerada como a disciplina que se preocupa com localizações. Aliás, um bom número de geógrafos trabalha com essa visão.

A geografia considerada como disciplina das localizações, posição aceita durante largo tempo, mostra-se todavia limitante do rol de relações que se dão entre o homem e o meio e, por essa razão, revela-se insuficiente.

Mas esse não é o único enfoque simplificador e deformador.
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Foi por isso que propusemos considerar o espaço geográfico não como sinônimo de território, mas como território usado: e este é tanto o resultado do processo histórico quanto a base material e social das novas ações humanas. Tal ponto de vista permite uma consideração abrangente da totalidade das causas e dos efeitos do processo sócio territorial.

Essa discussão deve estar centrada sobre o objeto da disciplina - o espaço geográfico, o território usado - se nosso intuito for construir, a um só tempo uma teoria social e propostas de intervenção que sejam totalizadoras. Entre os geógrafos, incluindo aqueles convidados para trabalhar com toda sorte de questões voltadas ao planeamento, o problema do espaço geográfico como ente dinamizador da sociedade é raramente levado em consideração. Ora, se as bases do edifício epistemológico são frouxas, as práticas políticas almejadas serão, no mínimo, enviesadas.

A compreensão do espaço geográfico como sinônimo de espaço banal obriga-nos a levar em conta todos os elementos e a perceber a inter-relação entre os fenômenos. Uma perspectiva do território usado conduz à idéia de espaço banal, o espaço de todos,  todo o espaço. Trata-se do espaço de todos os homens, não importa suas diferenças; o espaço de todas as instituições, não importa a sua força; o espaço de todas as empresas, não importa o seu poder. Esse é o espaço de todas as dimensões do acontecer, de todas as determinações da totalidade social. É uma visão que incorpora o movimento do todo, permitindo enfrentar corretamente a tarefa de análise. 

Com as noções de território usado e de espaço banal, saltam aos olhos os temas que o real nos impõe como objeto de pesquisa e de intervenção. Mas tal constatação não é suficiente. É indispensável afinar os conceitos que tornem operacionais o nosso enfoque. A riqueza da geografia como província do saber reside justamente no fato de que podemos pensar, a um só tempo os objetos (a materialidade) e as ações (a sociedade) e os mútuos condicionamentos entretecidos com o movimento da história. As demais ciências humanas não dominam esse rico veio epistemológico.

território usado constitui-se como um todo complexo onde se tece uma trama de relações complementares e conflitantes. Daí o vigor do conceito, convidando a pensar processualmente as relações estabelecidas entre o lugar, a formação sócia espacial e o mundo.

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Cada vez que, em lugar de considerar o movimento comum da sociedade como um todo e do território como um todo, partimos de um dos seus aspectos, acabamos encontrando lineamentos que apenas são aplicáveis a uma determinada área de atuação - uma instância da vida social -, sem, todavia autorizar uma intervenção realmente eficaz para o conjunto da sociedade. Em outras palavras, tais soluções são ocasionais, mas não duradouros remédios parciais, mas não globais.

Qualquer proposta de análise e interpretação que pretenda inspirar ou guiar uma intervenção endereçada ao conjunto da sociedade não pode prescindir, então, de uma visão desse todo. Incapazes de gerar mudanças que englobem a totalidade do território e da sociedade, as intervenções parciais atendem a interesses particulares ou apresentam resultados efêmeros e inoperantes.

Uma posição parcial da geografia frente ao seu objeto encontra abrigo nas fragmentações e dicotomias presentes em seu próprio seio, o que a torna teoricamente frágil. Conhecimentos operatórios e parcelares podem tornar-se entraves ao desenvolvimento da disciplina e de seu papel como ramo do conhecimento, particularmente quando parecem tomar o lugar da geografia ou justificar autonomamente sua existência.

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Por vezes é a própria formação do geógrafo que se torna um convite à fragmentação do conhecimento e do trabalho.

Quando se toma apenas urna parte do corpus da disciplina e assim mesmo o trabalho se torna exitoso, há nas pessoas um reforço à crença numa disciplina parcializada. É comum a opinião de que propor intervenções é possível àqueles enfoques fundados em visões parciais, ainda que essas intervenções amiúde sejam funcionais à política das grandes empresas. Será esse o êxito que buscamos?

No ensino da geografia é menos frequente do que seria desejável a consideração da totalidade do conhecimento geográfico. A geografia é quase sempre apresentada ao estudante, desde o primeiro momento, de forma segmentada dificultando a apreensão de uma abordagem essencialmente geográfica e comprometendo a formação do profissional e o futuro da própria disciplina. Como resultado, muitas vezes o geógrafo especializa-se em um ramo operacional voltado ao restrito mercado de trabalho.

Acreditamos poder escapar à "parcialização" da disciplina (e, destarte, das intervenções a partir dela), com a busca firme e continuada de uma ontologia do espaço geográfico. Esta busca pode ser entendida como a construção de um conjunto de proposições epistemológicas que, formando um sistema lógico coerente, e sendo fundada nos avanços metodológicos já conseguidos pela disciplina no século XX, aprimoraria o que se pode chamar de "núcleo duro" da geografia, desembocando, necessariamente numa visão geográfica totalizadora.

Conseguiríamos, desse modo, um rechaço à "indolência epistemológica" (situação que, aliás, não é só brasileira) na produção do conhecimento geográfico.
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O espaço é frequentemente considerado como espaço político, espaço econômico, espaço antropológico, espaço turístico. E esse é um grande problema para a disciplina.

Fragmentada, a geografia não oferece uma explicação do mundo e, portanto passa a precisar cada vez mais, de adjetivos que expliquem a sua finalidade. Ela perde substância e corre sérios riscos de não ser mais necessária nos currículos escolares. Tal fragmentação é decorrente, de um lado, da crescente impossibilidade, socialmente gestada, de percebermos que todos os elementos agem conjuntamente (e separações podem ser feitas apenas para fins analíticos). Soma-se a isto a consagração da fragmentação no ensino em todos os planos (nas aulas, nos livros, nas grades curriculares). A situação é agravada, ainda, quando no ensino superior - público e privado - adota-se uma especialização cujo fim é atender a uma certa política e ao mercado.

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Tanto o mercado como a política às vezes inspiram soluções desse tipo. Não será o caso de certas propostas fundadas, por exemplo, nas geografias do turismo, do meio ambiente, da cultura, dos SIG's, ou de sugestões ditas de planejamento regional, mas que, na verdade, beneficiam uma ou poucas atividades em um dado momento?

Não é demais assimilar estas proposições a uma fragmentação da disciplina geográfica em outras tantas geografias, que desejam, na prática, imporem-se como autônomas, quando seu papel auxiliar apenas as qualifica como ramos operacionais de uma geografia mais complexa e unitária. Esta parece mais possível de alcançar através de uma perspectiva do território usado, uma vez que estamos levando em conta todos os atores.

Buscando atender às exigências na formação de profissionais para o mercado de trabalho, cursos de graduação têm privilegiado a especialização do saber em detrimento do conhecimento abrangente, afastando o profissional do cidadão. Por outro lado, políticas restritivas de financiamento provocam um distanciamento entre as várias áreas do saber, privilegiando-se àquelas que possibilitam investigações aplicadas, consideradas da maior relevância econômica ou política.

Nesse contexto muitos geógrafos procuraram adaptar-se às novas exigências por meio de saídas particularistas no ensino e na pesquisa, enfatizando aspectos da realidade social como se fossem a totalidade do fenômeno geográfico. Em nome de uma modernização utilitária e produtivista, certos cursos de geografia correm o risco de jogar fora princípios que deveriam balizar e singularizar esta área do saber.

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Na evolução do pensamento geográfico, a vontade de totalização e a formulação dos respectivos enfoques têm sido presentes, ainda que contrariadas sempre por uma tendência à segmentação.

Vejamos um exemplo. Na época de Vidal de la Blache, a possibilidade de totalização às vezes concretizada com a ajuda da política de um Estado necessitado de um conhecimento geográfico, não sofria as investidas do mercado tal como as conhecemos hoje. Desse modo opunha-se um dique à fragmentação do saber geográfico e das suas propostas de ação.

Enfoques totalizadores tendem a buscar uma correspondência à unidade do mundo real. Todavia, no caso particular da geografia, essa ideia de unidade da Terra é contraposta por aqueles que se apoiam em realidades parciais para fundamentar argumentações também parciais ou redutoras. Assim, a geografia foi se firmando ao longo de sua história à base desse confronto entre duas vocações bem distintas. No plano do conhecimento ou das propostas de ação, a verdade teria sido tomada por diversas formas de engano.

E hoje? Quando a própria globalização é vista como um resultado da vontade de integrar mercados segundo um discurso único, ela não permite o reencontro de enfoques mais abrangentes.

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O problema central é como utilizar os conhecimentos sistematizados por uma disciplina no delineamento de soluções práticas e caminhos frente aos problemas concretos da sociedade. Dependendo das filiações teórico-ideológicas dos autores, isso parece ter sido possível aos especialistas da ciência política, da economia etc., cuja tarefa ultrapassa, sem maiores dificuldades, o limite da simples interpretação dos fenômenos para sugerir mudanças, isto é, para se erigir como uma política.

Quando o esquema interpretativo da sociedade próprio à nossa província do saber dá conta da realidade concreta em sua totalidade ele pode ser o fundamento da construção de um discurso novo para a ação política dos atores sociais responsáveis por sua prática, tais como partidos políticos, movimentos sociais, instituições etc. Um discurso socialmente eficaz pode ser o conteúdo, a base de intervenções "sistêmicas" na sociedade, em diferentes níveis do exercício da política, entre os quais, o mais abrangente seria a contribuição para a elaboração de um projeto nacional, comprometido com a transformação da sociedade em benefício da maioria da população do país.

A ideia de intervenção supõe um interesse político, entendido como interpretação histórica mais ampla, que implica um ideal de futuro como espaço de resolução de problemas supostamente arraigados nas sociedades.

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Não se trata de impor uma definição única. O conteúdo de uma geografia compreensiva pode certamente responder a uma entre várias linhas teóricas, segundo a escolha do autor. Mas, a partir daí, é indispensável dispor de um conjunto coerente de proposições, onde todos os elementos em jogo sejam considerados em sua integração e em seu dinamismo.

A geografia deve estar atenta para analisar a realidade social total a partir de sua dinâmica territorial, sendo esta proposta um ponto de partida para a disciplina, possível a partir da um sistema de conceitos que permita compreender indissociavelmente objetos e ações.

território usado, visto como uma totalidade, é um campo privilegiado para a análise na medida em que, de um lado, nos revela a estrutura global da sociedade e, de outro lado, a própria complexidade do seu uso.

Para os atores hegemônicos o território usado é um recurso, garantia da realização de seus interesses particulares. Desse modo, o rebatimento de suas ações conduz a uma constante adaptação de seu uso, com adição de uma mantenalidade funcional ao exercício das atividades exógenas ao lugar, aprofundando a divisão social e territorial do trabalho, mediante a seletividade dos investimentos econômicos que gera um uso corporativo do território. Por outro lado, as situações resultantes nos possibilitam a cada momento, entender que se faz mister considerar o comportamento de todos os homens, instituições, capitais e firmas.

Os distintos atores não possuem o mesmo poder de comando levando a uma multiplicidade de ações fruto do convívio dos atores hegemônicos com os hegemonizados. Dessa combinação temos o arranjo singular dos lugares.

Os atores hegemonizados têm o território como um abrigo, buscando constantemente se adaptar ao meio geográfico local, ao mesmo tempo em que recriam estratégias que garantam sua sobrevivência nos lugares. É neste jogo dialético que podemos recuperar a totalidade.

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Somente assim responderemos à questão crucial de saber como e porque se dão as relações entre a sociedade como ator e o território como agido e, ao contrário, entre o território como ator e a sociedade como objeto da ação. É essa, a nosso ver, a maneira de encontrar um enfoque totalizador, que autorize uma intervenção interessando à maior parte da população. 




1. Apresentado pelo grupo Estudos Territorais Brasileiros, do Laboplan (Laboratório de Geografia Política e Planejamento Territorial e Ambiental) do Departamento de Geografia - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP) no XI Encontro Nacional de Geógrafos. Florianópolis, Brasil, Julho de 2000.
2.* Colaboradores: Adriana Bernardes, Adriano Zerbini, Cilene Gomes, Edison Bicudo, Eliza Almeida, Fabio Betioli Contel, Flávia Grimm, Gustavo Nobre, Lídia Antongiovanni, Maíra Bueno Pinheiro, Marcos Xavier, María Laura Silveira, Marina Montenegro, Marisa Ferreira da Rocha, Milton Santos, Mónica Arroyo, Paula Borin, Soraia Ramos, Vanir de Lima Belo.
Revista Território, Rio de Janeiro, ano V, nº 9, pp. 103-109, jul. dez., 2000
Estudos Territoriais Brasileiros – Laboplan  Departamento de Geografia  Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas Uni versidade de São Paulo



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